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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Educadora Dorina Nowill trabalhou por um mundo melhor para os cegos



Pioneira da luta pela inclusão dos deficientes visuais no sistema escolar nacional, desenvolveu em sua fundação uma verdadeira fábrica do saber

» Carlos Tavares

A última imagem que ela viu foi uma fotografia de um navio em um álbum de viagem de uma amiga da família, quando acabara de completar 17 anos. A partir daí, o mundo começou a ficar embaçado para Dorina Nowill, as coisas perderam o sentido, momentaneamente, sem que os médicos soubessem descrever a patologia que a privou tão cedo da visão. Parece até que a cena do navio em alto-mar estava destinada a servir de símbolo de uma longa travessia de 74 anos de dedicação aos cegos do Brasil — uma co
munidade de 2,5 milhões de pessoas, que convivem com cegueira total ou baixa visão, segundo o IBGE.

Na noite de 29 de agosto, Dorina cedia ao inevitável: sua força, com a qual lutara contra uma infecção, por duas semanas, em um leito do Hospital Santa Isabel, em São Paulo, a abandonou. Na manhã do mesmo dia, ela afirmara a uma das netas, Martha, 29 anos, que estava “em paz”. Partiu com a serenidade que foi — durante toda a vida — uma das marcas de seu caráter. Não dá muito para escapar do lugar-comum quando se lê sobre a trajetória de luta dessa mulher em favor dos cegos ou quando se conversa sobre o seu espírito obstinado: Dorina Nowill enxergava muito mais do que muita gente que não possui deficiências visuais.

Ela podia não “ver” as coisas da vida, nos últimos 74 anos de existência, mas com certeza ampliava seus horizontes e dava um novo sentido a tudo, quando se tratava de esperança, fé, solidariedade e educação. “Para mim, ela chega a ser tão ou mais importante do que Louis Braille(1); porque ele criou o alfabeto, nos deu o método, mas ela nos deu o livro, a leitura, o saber”, avalia Noeme Rocha da Silva, 50 anos, formada em filosofia e estudante de ciências sociais. “Ela foi o ícone de nossa geração, fez do cego gente e nos apresentou um tesouro, que é o livro”, acrescenta a leitora de Machado de Assis e de José Saramago, entre outros autores de peso da literatura brasileira e universal. “Não tínhamos acesso a nada. Quem poderia imaginar que iríamos conhecer Machado? E Saramago?”, indaga Noeme, que lista entre os melhores títulos Ensaio sobre a cegueira. “Não porque fala da cegueira física, mas da cegueira do mundo, da violência da vida e do homem”, analisa.

Centro cultural
Numa sala cercada de estantes repletas de livros em Braille, de edições digitais e obras de várias editoras usadas pel
os ledores da Biblioteca Braille Dorina Nowill, em Taguatinga, que funciona no mesmo espaço da Biblioteca Pública de Taguatinga Machado de Assis, eles se reúnem toda semana para ler, ouvir histórias, escutar capítulos de livros ou obras inteiras, de todos os gêneros, didáticos ou de ficção, de Jung a Lima Barreto, de Heiddeger a Autran Dourado; leem e escutam poemas, crônicas de Rubem Braga e Drummond; se reúnem também para aprimorar seus conhecimentos em diversas áreas do saber, aprendem técnicas de informática para cegos, ensinam a outros e assim está criado um ciclo de troca de aprendizado dos mais ricos.

Especialmente na manhã de quarta-feira (1º de setembro), ainda sob o peso da emoção com a morte recente de sua mentora, os cegos da Biblioteca Braille Dorina Nowill não escondiam a vontade de expressar a admiração e a gratidão pela educadora que formou a maior rede digital em Braille da América Latina, na fundação que leva o seu nome, em São Paulo (SP). “Dorina deu os fundamentos de um processo de educação, de formação da pessoa cega no Brasil como nunca havia existido antes de sua passagem por aqui. Ela nos ajudou a ampliar nossos horizontes e a nos reconhecermos como seres normais, que merecem respeito e têm os mesmos direitos dos outros”, diz Neuma Pereira, 58 anos, que também é leitora dos grandes nomes da literatura brasileira.

Para Francisco de Paula, 62 anos, Dorina Nowill foi uma “iluminada”. E explica sua tese: “Ora, ela se colocou à disposição de outros cegos, quando poderia muito bem ter resolvido apenas o problema dela, numa época em que os preconceitos eram muito mais severos do que hoje. Mas não, ela assumiu o problema do outro e, se hoje nós temos este conhecimento sobre as coisas do mundo e da literatura, nós devemos a ela”. Francisco estava lendo em Braille a biografia de Dorina, E eu venci assim mesmo, de 1996, traduzida para o espanhol e com circulação na Europa, na América Latina e nos Estados Unidos.

A luta e o êxito
O título do livro de Dorina é bastante sugestivo e tem tudo a ver com o papel que ela exerceu em defesa dos cegos. Da obra, ela leu trechos na Bienal do Livro de 2009, em São Paulo, aos 90 anos, ao lado de escritores de obras infantojuvenis e de desenhistas como Maurício de Sousa, que, aliás, criou a Dorinha, personagem inspirada na própria educadora. O criador da Turma da Mônica estava no enterro da pedagoga, muito emocionado, e tratou de divulgar em seu site um recado de Dorina quando ele criou Dorinha, em 2007: “Dorinha é uma criança diferente, mas em muitas coisas ela é igual a você, sente o calor do sol, cujo brilho não pode ver; sente o perfume da flor, cujas cores seus olhos não podem perceber (…); é uma criança igual às outras, porque recebeu de Deus o dom da vida e da grandiosidade do ser”.

Cerca de 2 mil pessoas compareceram ao enterro de Dorina, na tarde da última segunda-feira. A escritora Cláudia Cotes, autora do livro infantil Dorina viu, desabafou: “Nunca conheci uma mulher com voz tão forte e tão determinada como Dorina. Tão inteligente e tão doce que dá vontade de gritar ‘fica, Dorina’!”. As assessoras da Fundação Dorina Nowill, em São Paulo, contam uma história que traduz esse espírito guerreiro. Certa vez, quando preparou-se para receber o diploma de formatura na Escola Normal Caetano de Campos, a prova de fogo era dar uma aula diante de uma banca examinadora composta de professores que não a conheciam. “O preconceito era muito grande naquele tempo, e ela então fingiu que não era cega”, lembra a professora de Braille, Sandra Menezes.

Dorina foi a primeira aluna cega a frequentar um curso regular e ajudou a abrir as portas desta e de outras escolas para alunas deficientes visuais de São Paulo e depois no Brasil inteiro. Em 1946, deu partida nas atividades da Fundação Dorina Nowill. Dez anos depois, colaborou para a elaboração da lei de integração escolar. De 1961 a 1973, dirigiu a campanha do Ministério da Educação para a inclusão dos cegos no sistema de ensino brasileiro.

Além da educação, Dorina Nowill sempre se preocupou com a prevenção da cegueira e com a inserção do cego no mercado de trabalho. Em 1954, conseguiu reunir no Brasil o Conselho Mundial para o Bem-Estar do Cego, com forte participação do Conselho Brasileiro de Oftalmologia e da Associação Panamericana de Saúde. Dorina era uma mulher sensível, inteligente e muito precavida, também.

Em 2000, quando deixou a presidência da fundação, aos 80 anos, ela procurou cercar-se de pessoas jovens, especialistas em informática e empresários paulistas. “Acho que ela fez tudo isso para nos proteger, para garantir que nada de ruim aconteça com o seu projeto, que está tão enraizado em nós”, acredita Noeme, a filósofa, referindo-se à produção, em Braille, que compreende 80% dos livros escritos e falados — distribuídos pelo governo federal nas escolas que oferecem cursos especiais para cegos.

1 - O pai do método
Louis Braille (1809-1852) é considerado o criador do método que permite aos cegos lerem por meio do tato. O próprio Braille ficou cego aos 3 anos, quando brincava na oficina do pai, fabricante de arreios e selas. Muito jovem, desenvolveu um método que se baseava em uma cédula de leitura de apenas três pontos de altura por dois de largura, com 63 combinações. O sistema é inspirado na chamada escrita noturna, inventada por Charles Barbier, mas Braille melhorou o sistema. Incluiu a notação numérica e musical. Em 1824, com apenas 15 anos, Louis terminou o seu sistema de células com seis pontos. O sistema permanece basicamente o mesmo até hoje


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